A vida e seus sabores: Uma perspectiva a partir da Terapia de Aceitação e Compromisso

Se você gosta de viajar sabe que uma parte importante da viagem é explorar a culinária local, que costuma fazer parte da cultura daquela região e possui suas peculiaridades, as vezes convidativa ou dependendo do local e das condições, muito desafiadora. Pode ser que você seja também alguém que não gosta muito de experimentar sabores novos e prefere sempre comer a mesma coisa e que independente do lugar que viaje sabe que na hora da fome, sempre vai procurar o mais conhecido possível, não dando a mínima para essa coisa de experimentar novos sabores e correr o risco de provar coisas esquisitas. Talvez você não tenha consciência disso, mas a comida faz parte do imaginário das pessoas, é uma construção simbólica, uma herança cultural. Faz parte de uma história de condicionamentos de ordem social, biológica, econômica, ambiental e possui inúmeras referências que nos conectam a ela e determinam as nossas escolhas diárias.

Imagine se a vida fosse um banquete, um convite à experiência gastronômica diária e que ela faz muito bem o trabalho, de te desafiar todos os dias a experimentar pratos que ela tem disponíveis e que, de modo arbitrário escolherá  pra que você os deguste.

Muitos dos pratos desse banquete podem ser deliciosos, com texturas surpreendentes, explosão de sabores, transitando entre o doce, salgado, ácido, agridoce, com texturas aveludadas, suaves ou crocantes, mas que também podemos ser surpreendidos por sabores amargos, azedos, apimentados, salgados ou doces demais, alguns com aspectos bem apetitivos, outros bem repugnantes.

É notável que a vida diariamente oferta experiências e a nós cabe apenas uma decisão: Experimentar ou não experimentar. Você não é obrigado! Você pode se interessar só pelos pratos mais apetitivos para você, os que você já conhece ou os que tem a cara boa, mas sabemos, que nessa aventura da vida, eles não estão disponíveis todo dia. E quando vem um diferente, que te remete a sensações desagradáveis, qual será sua postura? Você pode ficar revoltado e cuspir no prato, pode ficar revoltado e chutar o prato, pode ficar indignado e praguejar contra o prato, pode começar a dar mil razões do porquê não é justo ter este prato pra comer hoje, pode tentar se distrair pra não comê-lo, dizer que não está com fome e até ir procurar outra coisa pra comer. O prato continua aí! Todos os sabores e aprendizados contidos nele estão à sua disposição. Mas porque será que é tão difícil provar? Por que uma experiência diferente se torna tão desafiadora?

Tem sido difícil provar ou digerir o isolamento social das últimas semanas?

Quando crianças, aprendemos uma ampla gama de habilidades sobre como explorar e nos apropriarmos de referências ofertadas pelo nosso ambiente, sem precisar sermos expostos a muitos dos riscos diretos contidos nele. Somos ensinados a ter medo de coisas que nunca realmente aconteceram. Então é bem possível que coisas que você desgosta ou que tem nojo, na realidade você nunca tenha experimentado, mas que tenha criado uma referência a partir de reações completamente arbitrárias como:  uma cara feia ao ingerir um alimento, sinais de ânsia de vômito de algum familiar ao ingerir determinado alimento, ou escutar alguém dizendo: “isso é horrível”, é ruim, é azedo demais, “que esquisito, nunca vi isso”, “eca”.

Pode ser que você mesmo tenha experimentado algo em um determinado dia e que não tenha tido uma boa experiência, o que foi suficiente pra você nunca mais querer experimentar, mesmo que o mesmo alimento estivesse sido preparado por outras pessoas, de formas completamente diferentes e que tenha ganhado novas versões, talvez mais elaboradas e combinadas com ingredientes mais apetitivos.

Como seres humanos possuímos uma ferramenta maravilhosa e complexa, que é a linguagem, você pode rapidamente a reconhecer como “mente”, ela nos permite avaliar, categorizar, comparar, planejar, classificar tudo à nossa volta como bom ou ruim, pior ou melhor. Por causa da “linguagem” podemos nos comunicar de maneiras incrivelmente complexas e nos comportar de maneira diferente dos outros animais. É improvável que um cachorro fique ansioso pelo que ele vai comer mais tarde ou por algo que pode acontecer no final de semana, mas os humanos fazem isso o tempo todo porque a linguagem nos permite criar futuros imaginados em nossas mentes. Poderia dizer que ela é uma espada de dois gumes pois também é a responsável pela criação da nossa miséria, dos nossos maiores sofrimentos. Podemos facilmente nos enredar em nossos próprios pensamentos e sensações, usando as nossas próprias “garras linguísticas” para tecer opiniões sobre a vida e sobre nós mesmos, histórias sobre como a vida devia ser ou não ser, sobre o que temos de “bom” ou de “ruim”, sobre o nosso próprio valor ou dos outros, favorecendo um modo “fusionado” de pensar, onde acreditamos fortemente no que pensamos e então passamos a viver apegados às nossas “verdades”.

O problema é que esse modo fusionado, que chamamos  “comportamento governado por regras” nos torna muitas vezes rígidos diante de quaisquer experiências ou proposições que se apresentam a nós diariamente podendo nos tornar insensíveis ao contexto como um todo, insensíveis inclusive com relação à nossa própria capacidade de experimentarmos mais do que a nossa mente diz que podemos.

Por exemplo, somos ensinados que é muito importante sentir, pensar e lembrar coisas “boas", não coisas “ruins". Infelizmente, esse estado fusionado (essa “verdade”), que pode se expressar em opiniões sobre como a vida deveria ser, em uma confiança na regularidade do mundo e na previsibilidade dos eventos, com uma aposta no imperativo de que nascemos para sermos felizes nos conduz a um movimento que chamamos de “Esquiva Experiencial”, que exercemos quando não nos dispomos a entrar em contato com experiências privadas (Ex.: sensações corporais, emoções, pensamentos, memórias, predisposições comportamentais) e tomamos medidas para alterar a forma ou a frequência desses eventos e os contextos que os ocasionam.

Se olharmos mais profundamente para nossa postura diante da crise que temos experimentado devido ao isolamento pelo Covid-19 em analogia com a metáfora sugerida nesse texto, será que estamos dispostos a provar o que cada dia nos oferece ou temos nos desesperado por não estarmos vivenciando uma realidade açucarada, conhecida, previsível?

O que você tem experimentado diariamente? Qual tem sido a sua postura enquanto experimenta? Você tem simplesmente engolido os dias tendo uma postura de se entupir de atividades e de trabalho pra ocupar bastante o tempo pra que ele passe rápido, rezando pra que o isolamento acabe logo, talvez comendo sem prestar atenção no que come porque já conhece bem o alimento, então você dorme, dorme bastante e vê muitos filmes e séries ou joga vídeo game pra encher o tempo e evitar os pensamentos e sentimentos aversivos que surgem, como o medo do futuro.

Pode ser que você esteja aproveitando esse tempo para aprender a degustar coisas que você tinha curiosidade ou interesse, se aventurado em aprofundar relações ou fazer coisas que sempre pensava em fazer e esse momento tem sido uma verdadeira aventura, onde mesmo não sabendo exatamente o que vai acontecer, mas você tem se disposto a provar uma coisa de cada vez, um dia após o outro.

Na ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso) trabalhamos tendo como principal objetivo terapêutico ajudar o cliente a desenvolver o que chamamos de Flexibilidade Psicológica, que é segundo HAYES (2019) a capacidade de sentir e pensar com abertura, de atender voluntariamente à sua experiência do momento presente e de mover sua vida em direções que são importantes para você, construindo hábitos que lhe permitam viver a vida de acordo com seus valores e aspirações. Trata-se de aprender a não se afastar do que é doloroso, mas a se voltar para o seu sofrimento, a fim de viver uma vida cheia de significado e propósito.

De forma bem simples, a flexibilidade psicológica nos permite encarar os “desconfortos”, os “amargos”, os “salgados demais”, “picantes”, “diferentes” de uma maneira aberta e curiosa, observando se esses alimentos tem dentro de si nutrientes importantes pra nossa vida e o próprio ato de se abrir para degustá-los nos coloca em uma condição de sermos mais experimentadores, mais dispostos ao novo, não seres mimados, ávidos apenas por coisas gostosas e previsíveis, mas sensíveis às suas necessidades e valores.

Dizemos em ACT, que onde estão as nossas dores, estão os nossos valores, apontando para a constatação de que as coisas que têm o poder de nos causar mais dor são geralmente as que mais nos importam. E se essas dores, desconfortos com os quais você tem se deparado fossem o prato da vez?

Quais tem sido as dores que você tem vivido nesses tempos? O que preocupa você, o que te desafia? Você já pensou que ao invés de fugir dessas dores ou entorpecer a sua mente com mil afazeres ou com uma maratona infindável em Netflix, jogos de vídeo games, navegação na internet, busca por produtividade doméstica ou mesmo no trabalho, você pudesse provar essas dores com curiosidade? (Não que essas atividades sejam “erradas”, mas o que devemos pensar é: Será que elas são úteis o tempo todo ou será que elas me afastam de como eu quero ser e de coisas que eu preciso desenvolver?).

Sabe aquela ansiedade, aquele medo do futuro? Aquela sensação de inadequação? Aquele medo de arriscar e investir em algo novo? Já te ocorreu que tudo isso mexe com você porque tem algo importante dentro disso? E você já parou pra pensar que as qualidades aversivas dessas emoções são transferidas para as descrições que você faz delas (Linguagem em ação) e para as respostas que sabemos verbalmente que estão relacionadas a elas e que você acredita por isso que devem ser evitadas?

Você acredita que não pode, não deve e não quer provar. Por quê? Porque é ruim para sua mente (Isso é apenas uma avaliação, não é a verdade com V maiúsculo). Então você deve fugir, evitar experimentar qualquer coisa aversiva. Mas e se experimentar a ansiedade, mesmo que você seja enredado pela história de que “ansiedade é ruim”, te colocar na direção de coisas importantes pra você como: falar com alguém que precisa, se candidatar para uma nova vaga de emprego, apresentar uma proposta inovadora no seu trabalho, se declarar pra alguém que você ama? Você estaria disposto?

Sabe qual é o contrário de Flexibilidade Psicológica? Rigidez Psicológica, que segundo HAYES (2019) é, em sua essência, uma tentativa de evitar pensamentos e sentimentos negativos causados ​​por experiências difíceis, quando elas ocorrem e quando nos lembramos delas. Digamos que você perdeu alguns clientes ou está em um momento de instabilidade no seu trabalho. Alguns pensamentos assustadores podem aparecer: “Eu vou passar necessidades", “Não vou conseguir pagar as minhas contas”, “Por que eu não guardei dinheiro? Se eu não fosse tão indisciplinada teria economizado para momentos como esses!

Mas sabe o que naturalmente pode estar acontecendo? Antes que você perceba, você empurra esses pensamentos para um canto e evita ficar de frente pra eles, você se vira, fazendo uma das dezenas de coisas que citei acima, ou  fica horas no WhatsApp conversando com um amigo, vai pra cozinha e inventa receitas, faz milhares de tarefas. E pode ser que isso te ajude, a curto prazo, mas se o ciclo se repetir e você novamente não olhar pra esses pensamentos que apontam para o caminho de maior lucidez em relação aos seus passos profissionais e financeiros, quando esses pensamentos surgirem novamente, você vai identificá-los como “ruins”, “desconfortáveis” e não se atentará para o fato de que se você degustasse esses pensamentos e sensações, se os provasse com mais curiosidade e abertura poderia encontrar informações muito importante sobre sua vida, seus desejos e sobre como você quer viver a sua vida.

A flexibilidade psicológica nos capacita a aceitar nossa dor e a viver a vida como desejamos. Poder experimentar a vida, esses momentos difíceis que temos vivido de olhos e braços abertos é o maior desafio, pois o que a vida tem nos mostrado é que não temos controle para escolher o que experimentar, mas temos controle sobre como será a postura que teremos diante de cada prato que a vida nos oferecer. E então como quer encarar o de hoje? Com curiosidade, abertura, disposição ou com indisposição e cara feia?

Você pode escolher!

Referências:

HAYES, Steven.C. A Liberated Mind: How to Pivot Toward What Matters. (2019)


Escrito por:

Erica Faria
Psicoterapeuta comportamental contextual, membra da ACBS (Association for Contextual Behavioral Science), com formação contínua em ACT. Treinada por profissionais proeminentes da abordagem no Brasil e Exterior, incluindo os criadores. Coordenadora de Grupos de Estudos em ACT (Presenciais e Online) e Organizadora de Cursos de Formaçãos e Workshops em ACT no Brasil através da Contextualmente em BH.

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